segunda-feira, 16 de março de 2015


"Vou falar-lhes dum Reino Maravilhoso.
Embora haja muita gente que diz que não, sempre houve e haverá reinos maravilhosos neste mundo. O que é preciso, para os ver, é que os olhos não percam a virgindade original diante da realidade, e o coração, depois, não hesite.
O que agora vou descrever, meu e de todos os que queiram merecê-lo, não só existe, como é dos mais belos que um ser humano pode imaginar. Senão reparem:
Fica ele no alto de Portugal, como os ninhos ficam no alto das árvores para que a distância os torne mais impossíveis e apetecidos. Quem o namora cá de baixo, se realmente é rapaz e gosta de ninhos, depois de trepar e atingir a crista do sonho contempla a própria bem-aventurança.
Vê-se primeiro o mar de pedra. Vagas e vagas sideradas, hirtas e hostis, contidas na sua força desmedida pela mão inexorável dum Deus genesíaco. Tudo parado e mudo. Apenas se move e se faz ouvir o coração no peito, inquieto, a anunciar o começo duma grande hora. De repente rasga a crosta do silêncio uma voz atroadora:
- Para cá do Marão, mandam os que cá estão!..."

Miguel Torga, "Um Reino Maravilhoso" in "Portugal, A terra e o Homem", Antologia de Textos de Escritores do Século XX por David Mourão-Ferreira, II Volume - 1ª série, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1979, pág. 99.